24 de abr. de 2007

diário de viagem - parte I

O blog voltou de férias. E como a minha professora da sétima série, a Tia Tereza, sempre costumava gritar: é hora da redação! Nos dois próximos textos, você vai encontrar algumas observações dissimuladas e desconexas que ocuparam minha cabeça durante esses 28 dias de viagem. Lá vai.

Duas constatações importantes sobre a Europa: existem mais japoneses do que europeus naquele continente. E mais iPods do que gente para escuta-los.

Chega uma hora que você se cansa de dizer que Maradona não é brasileiro e acaba concordando com essa porra mesmo.

É engraçado, mas toda francesa que via, eu jurava que era a Amelie Poulin.

O cuidado que os Europeus têm com seus filhos é algo desumano. Vi bebês sendo carregados quase que em sacos de supermercados. Se eu nascesse na Europa ia querer ser um cachorro. Esses sim são muito bem tratados.

Os ingleses gostam tanto de cumprir regras, que se eu colocasse uma placa de “Pare” no meio da calçada tenho certeza que se formaria uma fila enorme, mesmo que ninguém soubesse por que estava parando.

Diferença entre brasileiras e francesas: as primeiras caminham como nenhuma outra do mundo, as segundas param como nenhuma outra do planeta. Parecem que elas estão sempre naquela pontinha da passarela.

O engraçado de conhecer brasileiros numa viagem como essa é que mesmo você morando em Recife e o cara em Ribeirão Preto vocês conversam como se fossem amigos de infância.

Na Europa, até a mendicância é globalizada. Eu mesmo dei um Euro pra uma menina da Bósnia que tinha perdido os pais na guerra e comprei o jornal de um grupo de adolescentes que estavam iniciando uma campanha contra Chirac. Se era verdade? Bom, quem se importa? Só sei que me senti o máximo colaborando com causas tão grandiosas assim.

Ir para Veneza sozinho é como ir para a Disney com a perna quebrada.

diário de viagem - parte II

O alemão é a língua mais grosseira do mundo. É praticamente impossível distinguir se um casal está brigando ou se estão trocando juras de amor. Nem Vinícius de Moraes conseguiria sobreviver a uma tradução em alemão.

O pior é que toda essa grosseria também acontece na língua escrita. Praticamente todas as frases levam uma exclamação. É gritaria demais. Minha maior vontade era passar numa locadora. Tinha certeza que encontraria títulos do tipo “Simplesmente Amor!”, “E o vento levou!!” ou “O silêncio dos inocentes!!!”.

Lembra daquela parte que dizia que as francesas paravam como ninguém? Também serve para as italianas. Só que com um adicional, elas param embaixo de um guarda-chuva como nenhuma outra do planeta.

Regra número1: Seja sempre o segundo. Mais ainda: observe sempre o primeiro. Assim você não passa vergonha na hora de usar a torneira, colocar o ticket do metrô ou descobrir a entrada do ônibus.

O maior problema de viajar sozinho é que todas as suas fotos são da cintura pra cima.

E por falar em foto, vejam só que interessante. Durante todo esse tempo, percorri os locais mais visitados do mundo e, de propósito ou sem querer, acabei passando na frente de milhares de câmeras fotográficas. Sejam de japoneses, italianos, tailandeses, americanos e por aí vai. Onde eu quero chegar? Fácil. Quero apenas dizer que nesse momento deve haver uma foto minha, ou pelo menos de uma parte do meu corpo, em praticamente todos os cantos do planeta.

Conclusão geral: vá para a Europa, mesmo sabendo que a Mc Donald’s de lá tem a péssima mania de cobrar pelo catchup.

12 de abr. de 2007

saudades de você, peter pan

Quanto mais velho eu fico, mais saudades tenho de quando era criança.
Saudades das coisas bestas, que são sempre as que doem mais.
De quando jurava que havia um funcionário anão dentro do caixa eletrônico.
De quando palavrão era “Caracas” ou sua sonora derivação “Carácolis!”
De quando ouvia “Dancing Queen” e ficava imediatamente apaixonado.
De quando acreditava que havia uma lua e um sol para cada cidade.
De quando inconstitucionalissimamente era a maior palavra do mundo.
De quando minha mãe deixava eu abrir o yakult no meio do supermercado.
Deus sabe como queria passar por isso de novo. Não do mesmo jeito, claro.
Dessa vez daria uma atenção especial às coisas antes sem importância.
“Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono”, disse o grande poeta.
Não sei o que anda acontecendo, mas nesses últimos dias tenho pensado muito em saudade. Não só de quando era criança, mas saudade de tudo.
De pessoas, de lugares, de olhos e de croissants.
É quando me pego querendo reviver uma coisa que já não posso mais.
“Querer” inclusive é o verbo mais usado por quem sofre de saudades.
Quase sempre no seu pretérito imperfeito, donde se tem: Queria.
Queria que ela ainda me amasse como antes.
Queria que ainda fosse carnaval de 1985.
Queria que meu peixe ainda estivesse vivo.
Queria que ela ainda escrevesse nossos nomes na árvore.
Como sempre, Adriana consegue explicar melhor que eu:
Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue.
E, por favor, não me venha com essa história de que sentir saudade é bom.
Pode até ser, de vez em quando, mas a danada foi feita mesmo é pra doer.
Vai ver é por isso que não se vive de saudade. Apenas se morre dela.
O problema é que algumas saudades matam mais do que outras.
É o caso da saudade ao contrário. Aquela que vem antes da hora de vir.
Antes de a gente partir, antes de alguém ir embora, antes do temido adeus.
A pessoa amada ainda está bem ali na nossa frente, mas por uma contradição do destino a gente já tá com saudade dela. Vai entender isso.
Pior é que a saudade ao contrário também acontece com lugares e objetos.
Você pode passar por uma praça cento e cinquenta vezes, mas a última vai ser sempre a mais dolorida. Isso, é claro, se você souber que ela é a última. (Senão, já cai na categoria de saudade convencional)
Será que a prefeitura vai finalmente pintar esses banquinhos?
Será que os passarinhos vão continuar com medo das pessoas?
Será que as coisas vão ser do mesmo jeito quando eu não estiver aqui?
Sentir saudade ao contrário é colocar a carroça na frente dos bois, a prorrogação antes do tempo normal, o amém antes do em nome do pai.
É o rapaz que na véspera de sua amada partir, fica em casa chorando.
Ao invés de aproveitar os últimos instantes ao lado da pessoa querida.
Mas pensando bem, não é algo tão difícil assim de se entender.
Porque sinceramente, acho que nada dói tanto quanto a consciência de se dar o último beijo, o último abraço ou fazer a última declaração de amor.

como nascem as piadas

Tinha um alemão, um japonês e um brasileiro. Pronto, é quase certo que vai começar uma piada. Impressionante como funciona a cabeça da gente. Oras, eu podia muito bem estar falando de um assunto sério. Uma reunião importante de uma multinacional onde estariam sentados em volta da mesa, um empresário alemão, um investidor japonês e um engenheiro brasileiro. Mas não adianta, só o fato de começar falando que tinha um alemão, um japonês e um brasileiro, já faz com que a gente pense que uma piada está vindo por aí. É exatamente sobre isso que eu queria falar hoje, quarta-feira sim. Sabe aquela da loira que usou liquid paper na tela do computador? Ou aquela do pintinho que só tinha uma pata, foi ciscar e caiu? Então, muito aqui entre nós, quem porra inventou essas piadas? Você nunca se questionou isso? Piada pra mim é praticamente uma ciência. Ou melhor, é um estilo literário que deveria ser estudado como qualquer outro. Assim, teríamos os autores modernistas, os construtivistas, os romancistas, e, claro, os piadistas. Escrever piada é uma arte acessível para poucos. Todo mundo arranha umas poesias, uns contos, uma letra de música. Mas quantos se arriscam a escrever uma piada? Poucos, muito poucos. Escrever uma piada é saber a hora certa de parar. É não falar nem uma palavra a mais, nem uma a menos. É induzir ao riso, sem ser explicativo demais. Juro que quando era mais novo, eu tinha uma teoria que cada vez me parece mais possível de ser real. Eu acreditava que existiam empresas para criar piadas. Juro. Funcionava mais ou menos assim. Dentro de um enorme galpão todo pintado de branco, centenas de mesinhas com uma pequena luminária se amontoavam uma ao lado da outra. Os estagiários seriam o nível mais baixo da hierarquia. Eram eles quem criavam as piadas mais básicas, especialmente aquelas de cúmulos.
Cúmulo da safadeza: dar em cima da secretária eletrônica.
Cúmulo do Ciúmes: Brigar com a mulher porque ela abriu as pernas na hora do parto.
Cúmulo do Engano: Uma minhoca entrar numa macarronada pensando que é suruba.
Cúmulo do Egoísmo: não vou contar, só eu que sei.
Acima dos estagiários, estariam os trainees. Eles seriam os responsáveis pelas piadas de categorias. Assim, teria o departamento de piadas de loiras, de portugueses, de bêbados, de padres e de argentinos.
Acima dos trainees, estariam os funcionários propriamente dito. Pra esses, não tinha regra. Tudo podia virar piada. Lá no fundo do galpão, numa salinha isolada ficava o departamento de humor negro. Eram de lá que saíam as piadas sobre Senna, Mamonas Assassinas, Lady Di e todo tipo de acidente capaz de chocar a humanidade. Ao lado desse departamento, ficava a sala do presidente. Um senhor sisudo com quase 60 anos, que passava o dia debruçado em números, gráficos, planilhas e pesquisas. Sua mesa era de uma suntuosidade incrível e na parede ao lado de dezenas de certificados, estavam emolduradas as fotos de Juquinha, Joãozinho, Mariazinha e Seu Lunga. Pronto, era assim que eu imaginava uma empresa de piadas. Quando comecei a escrever esse texto, há mais ou menos duas semanas atrás, pensei em desafiar minha pouco habilidade para escrever. Eis o desafio: duas semanas para criar minha própria piada. O resultado foi um fracasso, não consegui inventar nada. Mas aos poucos fui percebendo como pequenas coisas que aconteciam perto de mim, poderiam servir de ponto de partida para alguma piada. Claro que elas precisam ser melhor trabalhadas, mas como começo eu até que gostei do resultado. Acho que você não vai rir de nenhuma, mas juro que tudo aconteceu de verdade. Então lá vai:

Conversa entre eu e meu primo de 7 anos, que tinha mania de estudar com a televisão ligada.

- Rafinha, é verdade que você sabe tudo de história?
- É sim, pode perguntar.
- Então, lá vai: quem descobriu o Brasil?
- Pedro Bial.


No dia posterior a uma enorme orgia alcoólica, resolvo me confessar com minha mãe:

- Poxa, ontem vomitei tanto que estourei até o vaso.
- Affe, meu filho, o banheiro deve ter ficado cheio de cacos.
- Ow mãe, foi o vaso sanguíneo.


Outra de álcool. Eu e uma amiga minha que está deitada na maca após tomar dois tubos de soro e injeções de glicose.

- Cecília, vamo embora que já são seis da manhã.
- Não posso, eu to com fotografia.
- Han?
- É, fotografia. Eu to.
- Com assim Cê?
- Eu não consigo abrir o olho por causa da luz.
- Não será fotofobia?


Uma prima, que apesar seis anos já mostra sintomas de genialidade, depois de ver seu pai tomando banho pelado:

- Mamãe, mamãe, o papai tem um rabo na frente.

sonhos

O carro dos seus sonhos.
A mulher dos seus sonhos.
A viagem dos seus sonhos.
E acreditem, já cheguei a ponto de escutar “a sanduícheira dos seus sonhos”.
A verdade é que desde muito tempo, os sonhos estiveram relacionados a um conceito de idealização. Em poucas palavras, se é perfeito é um sonho.
John Lennon sabia que “a banda acabou” nunca teria o mesmo impacto de “O sonho acabou”. Tenho pra mim que grande parte do fascínio que temos pelos sonhos vem exatamente do fato de conhecermos tão pouco a respeito deles.
Alguns livros mais caras-de-pau chegam a estabelecer fórmulas.
Sonhar com calvície é sinal de trabalho.
Sonhar com coelhos é sinal de lucratividade.
E, pasmem, sonhar com um caminhão na estrada é sinal de casamento.
(Alguém por favor me explica esse?)
Freud foi mais além ao afirmar que todo sonho é a realização de um desejo.
Mas que o pai da psicanálise não me escute, eu nunca tive o desejo de andar pelado no meio de um shopping center lotado.
Seja como for, uma coisa é certa: nós não temos nenhum controle sobre nossos sonhos. Assim, uma freira pode sonhar com a maior sacanagem do mundo. Um são paulino roxo pode sonhar que está na torcida do Palmeiras. Um cara machão pode sonhar com o Gael Garcia Bernal e por aí vai.
Bom, mas chega de enrolação e vamos direto ao ponto.
Tudo que falei até esse momento tem o único propósito de servir de introdução pra que pudesse contar o sonho que tive essa noite.

Eu tinha sete anos e estudava num colégio aparentemente normal. Minha sala ficava ao lado do banheiro das meninas e, por isso mesmo, tinha um vazamento terrível na parede por trás do quadro negro. Até então nada muito interessante. Mas aos poucos fui me dando conta de um detalhe no mínimo surreal: nesse mesmo colégio estudavam São Pedro, São João, Santo Antônio, Maria, São Jorge e mais um monte de santos católicos. Eles eram crianças como eu, mas cada um já tinha seu pequeno “poderzinho”. Encurtando a história, inventei de me apaixonar pela tal da Maria que fazia questão de espalhar para o colégio inteiro que preferia morrer a ter que beijar um menino. Queria ir pro túmulo virgem, a coitada. Insistente como eu era, fui procurar o Antônio que tinha uma fama enorme de conseguir juntar os meninos e meninas apaixonados. Como era de costume, Antônio sempre cobrava uma taxa que variava de acordo com o grau de dificuldade. Feito isso, Antônio pediu que eu fosse para o campo de futebol que ficava por trás das salas de aula e esperasse por Maria. Matei a aula de matemática e fui para lá. Foi aí que minha vida começou a se complicar. Pro meu azar, Pedrinho também era apaixonado por Maria e acabou sabendo do nosso encontro. Imediatamente, o infeliz providenciou uma chuva daquelas. Parecia o fim do mundo. É claro que com toda aquela água, Maria não se atreveria a me encontrar em canto nenhum. Pra piorar minha situação, quando estou correndo pra fugir da chuva, eis que surge o Diretor da escola com a cara mais braba que eu já vi no mundo. Ao lado dele, estava um menino magrinho e de óculos enorme. Depois fiquei sabendo que foi ele quem entregou pro Diretor que eu não tinha ido pra aula de matemática. Nem fui tirar satisfação, mas tenho certeza que era Judas o nome daquele pirralho com cara de nerd.


Acordei totalmente desnorteado depois de um sonho desses.
Quase num ato de desespero, acabei recorrendo aos tais livros caras-de-pau.
Tinha lá, sonhar com santos é sinal de promoção no emprego.
Sonha com chuva é noivado próximo.
E sonhar com colégio é dificuldade em decidir sobre sua própria vida.
Resumindo: provavelmente essa semana vou ter que escolher entre meu chefe ou minha namorada. Viu, esse negócio de sonho não tem mesmo nexo nenhum.

será que ele é?

De: Eduardo Feitosa
Para: Pedro Eugênio
Enviado: sexta-feira, 10 de novembro de 2006 19:49:00
Assunto: Será que ele é?


Pedro, só estou mandando esse e-mail porque a situação em que me encontro chegou a níveis insuportáveis. E como você é uma pessoa diretamente envolvida no problema em questão, achei por bem descontar um pouco dessa raiva. Olha, eu sei que não existe frescura entre a gente, então vou direto ao ponto. Quando você me pediu para hospedar um amigo seu aqui em casa, eu nem pensei duas vezes. Aceitei na mesma hora. Amigo seu é amigo meu e sabia que esse cara tinha dado uma baita força durante todo esse tempo que você está morando aí no sul do país. Acontece que o Ivan já está instalado aqui em casa há quase um mês. E pelo andamento das coisas, ele não pretende ir embora tão cedo. Fica o tempo todo repetindo que o nordeste é maravilhoso, que as praias são lindas e que os salva-vidas são fantásticos. Nunca tinha entendido bem essa última observação, mas cada vez ela tem ficado mais clara para mim. Em todos esse dias que o Ivan está aqui, nunca falou de nenhuma mulher que não fosse sua mãe ou sua babá de infância. Claro que não dei muita importância pra isso, mas com o passar dos dias foram acontecendo coisas que estão me deixando temeroso. Essa noite minha namorada dormiu aqui em casa, nada demais até aí. Mas você acredita que no café da manhã o Ivan chegou pra mim e disse que eu devia ter sido mais carinhoso com ela durante a noite. O desgraçado ouviu tudo: as conversas, as risadas, os gemidos. E vem me dizer que eu não devia ter dormido logo, devia ter sido mais compreensivo e mostrado pra minha namorada que eu não estava interessado apenas no sexo. Sinceramente Pedrão, isso não é coisa de homem que se preze. Lembro bem que você sempre dizia que achava minha namorada uma maravilha e que se ela desse corda você passava o rodo. Isso sim que é amigo, isso sim que é ser homem. Dia desses comprei uma cerveja pra tomar com ele aqui em casa e o cara mandou eu esperar um pouco. Saiu de casa bem rapidinho e voltou com duas garrafas de chá gelado dizendo que agora sim estava pronto pra me acompanhar. Porra Pedrão isso é coisa de frango, fiquei até constrangido de tomar as cervejas. Fico imaginando essa cara num estádio de futebol. Ou melhor, prefiro nem imaginar. Outro dia ele veio com uma conversa de que foi para uma boate gay só pra conhecer o ambiente. Hahahahah, esse papo pra cima de mim? To agüentando mais não Pedoca, o cara agora se despede de mim dizendo “xêro na bunda”. Ah vá pra merda, nunca dei essas intimidades. O engraçado é que ele nunca deixava o banheiro fedendo. Porra Pedro, quantas vezes você não me xingava por ter usado seu banheiro e impregnado a casa toda? Isso sim é coisa de homem. Mas com ele não. Ou o cara não faz necessidades ou então fica no banheiro abanando até o cheiro se dissipar. Comecei a ler um livro sobre a psicologia da sexualidade e porra, tenho certeza, as informações batem. O livro diz que algumas atitudes repetitivas podem esconder um desejo sexual reprimido. E sabe qual foi minha grande descoberta? O Ivan sempre entra em casa pela porta dos fundos. Entendeu a relação? Homossexualidade e porta dos fundos? Hein, hein. Não quero que você me veja como alguém preconceituoso nem nada, mas poxa eu sei lá se de noite ele está entrando no meu quarto pra me ver dormindo. Juro que penso nessas coisas. É uma questão de privacidade mesmo. E pra não dizer que eu to me garantindo só na psicologia, resolvi adotar a técnica mais infalível já inventada até hoje. Ontem à noite, cheguei em casa e o Ivan não estava. Como sabia que ele chegaria em pouco tempo, me escondi atrás da geladeira. Minha idéia era dar um susto enorme nele, porque você sabe que as pessoas se entregam na hora do susto. Pedrão, têm cenas na vida da gente que são impossíveis de descrever e com certeza essa foi uma delas. O cara deu escândalo, fez chilique, esperneou e ainda chamou o nome de quatro santos seguidos. Enfim, não restam mais dúvidas. Hoje de manhã, ele deixou um bilhete na geladeira dizendo que queria ter uma conversa séria comigo de noite. Estou com medo dele me encostar na parede e dizer que me ama. Por isso, arrumei minhas malas bem rápido e vou sair de casa. Queria saber se podia passar um tempo contigo aí no sul. Prometo que levo cerveja. Abraços. Eduardo.

o ciúme e a flecha preta

Deixa eu contar a minha história e depois você tira suas conclusões.
Tenho quarenta e sete anos e faz exatos trinta minutos que minha mulher saiu pela porta da minha casa jurando nunca mais voltar.
Digo “minha” casa porque foi comprada com meu dinheiro e meu suor.
Por isso não vejo razão nenhuma para dizer “nossa”.
Outro detalhe importante: também não tenho mais amigos.
E quer saber? Estou bem melhor assim.
Não preciso mais emprestar meus cds, meus dvds, meu carro.
Prefiro a morte do que imaginar meu cd do Bob Dylan em alguma casa que não a minha.
Não é exagero, é apenas um zelo excessivo.
Um zelo excessivo pelas coisas e pelas pessoas.
Principalmente, pela minha mulher.
Cheguei a criar até uma filosofia:
O único homem que tem que falar dela sou eu.
O único homem do qual ela tem que falar também sou eu.
E aí vou tentando aplicar essa teoria na prática.
Quando assistíamos a um filme, ela sempre ficava encantada com a beleza do ator. O que eu fiz? Passei a alugar só filmes do Mazzaropi.
Acabaram-se as discussões sobre Santoro, Cruise, Clooney.
Outra atitude que me ajudou bastante:
Para nunca ter ciúmes de um vizinho, comprei a minha casa e aluguei a do lado.
Assim tenho a certeza de que ela nunca estará ocupada.
Acontece que algumas situações acabam fugindo do meu controle.
Dia desses, fomos para uma sessão de regressão e acabei descobrindo que em sua vida passada, lá por meados do século XV, minha esposa era amante de um membro da alta corte francesa.
Fiquei possesso.
Eu não conseguia aceitar esse tipo de traição.
Acho que passamos uns vintes dias sem nos falar direito.
Mas aos poucos, eu vinha tentando ser um cara mais compreensivo.
O problema é que ela tinha essa mania, sabe, essa obsessão terrível.
De ser sempre a mulher mais bonita da festa. A que atraísse todos os olhares.
Um dia, confesso que passei dos limites e num ataque imenso de ciúmes coloquei vinagre no pote de shampoo.
Espero que você entenda que não fiz por maldade.
Meu pensamento era de que com um cabelo ruim, ela não chamaria tanta atenção. Poxa, ela não podia ir na padaria sem se vestir como quem vai para um casamento.
Bom, agora que você conhece os fatos espero que entenda que tive meus motivos para agir assim.
Hoje, sou uma pessoa extremamente feliz.
Não tenho mais do que sentir ciúmes.
Estou mais leve.
Minha mãe contava uma história que talvez ajude você a entender minha personalidade.
Ela dizia que quando eu tinha cinco anos e meu irmãozinho nasceu,
eu cheguei em seu ouvido e disse “Mãe: ou ele ou eu.”

clara e o peixe

Clara tem seis anos, cabelos pretos lisos e três unhas roídas em cada mão.
Ela entra em seu quarto sorridente, carregando um peixe roxo e amarelo dentro de um saco cheio d´água. Clara se aproxima da escrivaninha e despeja o peixinho para dentro do aquário. Deitada na sua cama ela passa horas observando o novo bichinho de estimação.
Na manhã seguinte, Clara abre os olhos e vê uma das cenas mais tristes de sua vida.
O peixinho, morto ali no chão, bem ao lado da sua cama.
A menina se ajoelha, tenta levantar o peixinho e começa a chorar desesperadamente. Talvez, aquela tenha sido a maior dor que Clara já sentiu.
Vestida de preto dos pés a cabeça, em luto pelo pequeno ser que se foi, Clara usa uma pequena caixa de fósforos para servir como túmulo. Ela pega uma folha de papel em branco e sai correndo para fora de casa.
Passa uma rua, passa outra. Passa uma fazenda, passa outra.
E finalmente, chega num pequeno riacho que de tão estreito dava para atravessar num pulo. Mas ela não faz isso. Se ajoelha e dobra a folha de papel até construir um barquinho.
Clara coloca a caixinha de fósforos dentro da pequena embarcação, que sai navegando mundo a fora. Como alguém que vê seu ente querido partir, Clara acena com um lenço, enquanto as lágrimas vão escorrendo pelo rosto.

Clara entra saltitante no seu quarto, trazendo um peixinho lindo. Azul e amarelo. Enquanto coloca o bichinho dentro do aquário, Clara observa extasiada cada detalhe do seu novo companheiro. Ela fica horas assim, até que sem agüentar mais, deita e dorme.
Ao acordar pela manhã, Clara se desespera. Seu peixinho, coitado, desfalecido no chão do quarto. A menina sente seu coração ficar bem pequeno e como se não agüentasse o peso de tanto sofrimento, Clara cai no chão. Em sua cabeça, surge a pergunta “Por quê?”.
Na cozinha, Clara olha atentamente para o forno onde vê o corpo do pobre peixinho ser cremado pelas chamas. Sua expressão revela tanto sofrimento que fica difícil acreditar que ela só tenha seis anos. Clara retira as cinzas do forno e as leva até o jardim de sua casa. Com a ajuda de um ventilador e de uma enorme extensão, a menina espalha as cinzas do finado peixe por todo o jardim. Enquanto faz isso, ela canta baixinho uma música triste que sua avó lhe ensinara.

Clara entra em seu quarto, carregando um saco d´água com um peixe cor de rosa. Ela se deita na cama e não consegue tirar os olhos do aquário. Aos poucos vai adormecendo até se entregar por completo ao sono. Pela manhã, a pequena menina abre os olhos lentamente com medo de olhar para o chão. Até que num surto de coragem e numa rápida olhada, ela percebe que seu peixe está nadando feliz no aquário. Clara resolve dormir mais um pouco. Após meia-hora, volta a abrir os olhos e constata que seu peixe não morreu.
Impaciente, Clara se vira para um lado e para outro da cama. Cobre a cabeça com o travesseiro. Tenta contar os carneirinhos.
Até que não agüentando mais, se levanta e vai em direção ao aquário.
Com as mãos, ela tira o peixinho do aquário e o coloca no chão, em cima do tapete.
Sem nenhuma expressão no rosto, Clara assiste ao peixinho se debater até a morte.

uma calcinha branca e um suco de laranja

De tão discutidos, alguns assuntos acabam se esgotando com o tempo.
E pra dificultar minha situação, resolvi escrever logo sobre o assunto mais esgotado de todos os tempos: casamento.
Não importa a quantos desses você já tenha ido na vida,
têm coisas que simplesmente não mudam.
A senhora que se emociona lembrando do seu casamento.
A mocinha que se desespera achando que o seu nunca vai chegar.
A mãe da noiva que não entende o que sua filha viu naquele rapaz.
A daminha de honra que não sabe muito bem o que ta acontecendo,
mas sabe bem que precisa caminhar o tempo todo com a cabeça erguida.
O cara da câmera que depois de filmar 60 cerimônias,
não consegue mais se emocionar com nenhuma.
Sem falar naquela sensação angustiante de que um dos noivos vai dizer “não”
ou que alguém vai tropeçar e causar um desastre fantástico.
Quando isso não acontece, só nos resta ocupar a cabeça com alguma coisa.
E foi assim que me peguei pensando num troço meio difícil de falar.
Tomo um pouco de coragem e lá vai: Eu quero me casar.
Pronto, ta dito. Agora não volto atrás.
Quero me casar por um motivo que foge um pouco dos padrões convencionais. Quero me casar para ter o prazer de acordar ao lado de alguém que eu ame.
As pessoas estão preocupadas demais em se deitar com seus parceiros.
Fazem de tudo para que a noite seja o momento quente do relacionamento.
Mas é aí que elas se enganam, todas elas.
O segredo não está no início da noite. Está no fim dela.
O que eu vou dizer agora pode soar meio doentio para algumas pessoas,
mas nada, se compara a beleza de uma mulher que acaba de acordar.
A cara ainda inchada, os olhos apertados, o cabelo despenteado, até a pequena remela no canto do olho ajuda a compor o quadro. Tudo é perfeito.
É de manhã que a mulher está mais vulnerável, mais necessitada de proteção.
Despida de sua maquiagem, da sua armadura, de seu jogo de sedução.
É quando os segredos são revelados e os compromissos são selados.
É quando as conversas são sinceras e os gestos são naturais.
Pela manhã, não existe falsidade.
Sim, porque a noite é pecadora, mas a manhã é inocente.
E quando essa inocência vira sensualidade, aí a coisa vai longe.
Porque não existe convite melhor para o amor do que uma voz rouca e uma brecha de luz atravessando a cortina.
Fico imaginando a felicidade do príncipe ao ver a bela adormecida acordar depois de tanto tempo de sono.
Eita que coisa bonita.
Quer saber, preciso me casar imediatamente.
E na noite da lua de mel, vou fazer questão de dormir logo.
Pra ver se o dia amanhece mais rápido.

uma mente sem lembranças

E se fosse mesmo possível apagar alguém da nossa memória?
Simplesmente escolher uma pessoa e puff…delete.
Não quero discutir aqui sobre o processo que tornaria isso viável,
quero sim ir direto para a segunda pergunta: quem você apagaria?
Uma ex-mulher que até hoje lhe faz sofrer.
Um namorado do passado que nunca saiu da sua cabeça.
Um cachorrinho de estimação que partiu dessa pra melhor.
Bom, gente pra apagar não faltaria. Imagina então como a vida ficaria mais fácil. Você acabava um relacionamento de dez anos e no dia seguinte nem lembraria da outra pessoa.
Psicólogos e escritores de auto-ajuda estariam falidos.
Mas eu fico aqui pensando.
Seria suficiente apagar a pessoa ou teríamos que apagar tudo que de alguma forma lembrasse ela?
A música do primeiro beijo. O bar do último encontro.
O crepe de rúcula e tomate seco que vocês sempre comiam juntos.
Falando sério, imagina a bagunça que ia virar se essa moda pegasse mesmo. Iam ter ex-namorados se cruzando na rua sem se reconhecer.
Maridos dando em cimas de suas próprias ex-mulheres.
Vou ainda mais longe.
Eu poderia apagar uma menina ontem e me apaixonar por ela hoje.
Bastava para isso ver aquele jeitinho dela arrebitar o nariz.
Sim, porque eu posso ter me esquecido dela, mas continuo me apaixonando por meninas que arrebitam o nariz.
Entende o que eu quero dizer?
Sem falar nas chantagens que começariam a surgir:
“Querido, vamos passar as férias na casa da mamãe senão eu te apago”, “Renata, traz logo essa cerveja antes que eu te delete”.
Concluindo toda essa história, eu queria só dar uma opinião pessoal.
Sei que a possibilidade de apagar certas pessoas é realmente tentadora.
Aposto até que você já cogitou alguns nomes aí na sua cabecinha.
Mas, de verdade, acho que no final de tudo isso seria uma coisa ruim.
Sabe aquele negócio de aprender com os erros? Então, esse é o grande lance.
Se a gente apaga alguém que nos faz mal de alguma forma,
estaríamos sempre condenados a cometer os mesmos erros. Depois e depois e depois. Tem mais. Se Romeu tivesse apagado Julieta, será que ele teria sido feliz com outra mulher?

quando acaba o amor

Dia desses passei por um casal que se beijava debaixo de chuva.
Lembro de ouvir a menina gritar:
“Vai acabar com minha escova ...vamos sair daqui, rápido!”
Nessa hora, cheguei a conclusão: o amor está sumindo do mundo.
Exagero meu? Não. Está sumindo mesmo.
Responda rápido:
Qual foi a última vez que você se deitou com alguém na grama para ver o céu?
Aposto que faz um tempão.
Das duas, uma. Ou a menina reclama que a grama tá pinicando as costas ou vem um guarda dizer que é proibido deitar ali.
Pra piorar tudo, os poetas estão morrendo. E no lugar deles estão nascendo DJ´s.Tenho medo, medo mesmo.
Uma sensação estranha de que não surgirão mais “Chicos Buarques”, “Vinícius de Moraes”, nem outro “Elvis” para escrever “Take my hands, take my whole life too” ou muito menos um Balão Mágico para cantar “Se enamora, a gente de repente se enamora e sente que o amor chegou na hora e agora gosto muito de você.”
Mas se você me perguntar qual a solução pra isso, eu te digo de imediato:
Não sei.
Talvez fundar uma ONG, talvez escrever um livro.
O que sei é que sou apaixonado por essas coisas de amor faz muito tempo.
Se é que pode isso.
Lembro de quando tinha quinze anos e me apaixonava loucamente por qualquer menina com quem conversasse por mais de vinte minutos.
Era coisa de adolescente eu sei, mas que não deixa de ser uma coisa bonita.
Nunca comecei um namoro sem achar que aquela era a mulher da minha vida. E olha que nessa época meu ideal de mulher era a Cameron Diaz deitada num tapete de lã branco usando apenas uma camiseta regata e uma calcinha de algodão.

a lua e o mar

Poucas coisas me incomodam tanto quanto não entender.
Não entender o que quer que seja.
Um filme, uma piada ou uma bula de remédio.
Não é questão de burrice, não.
Tenho a impressão de que algumas coisas são feitas simplesmente para não serem entendidas. Como essa frase que me deparei um dia desses, depois de comer uma carne acebolada com arroz chop-suey num restaurante chinês da vida. Abri o biscoito da sorte sem muita pretensão, não sou de acreditar nessas coisas, e eis que me deparo com a seguinte citação:
“Não tente tirar a lua do fundo do mar”.
Me desculpe toda a tradição chinesa, mas o que diabos quer dizer isso?
Onde está minha sorte nessa história?
Enfim, ignorei o biscoito e fui cuidar da minha vida.
À noite, quando deitei a cabeça no travesseiro, sem perceber me peguei pensando novamente na bendita frase. Estava decidido a descobrir seu significado.
O que o biscoito chinês queria dizer pra mim?
Claro que era uma coisa metafórica. Afinal não existe lua no fundo do mar.
Mas o que era então?
Tentei fazer uma associação simples para facilitar o entendimento.
Cheguei a algo do tipo “Não tente colher manga em pé de caju”.
Piorou ainda mais minha situação.
Cogitei também a possibilidade de terem digitado errado.
Vai ver que o certo era “Não tente tirar a lula do fundo mar”.
Faria mais sentido, é verdade. Mas perderia toda a poesia.
Não deve ser isso.
O que sei, é que desde então, essa frase não sai mais da minha cabeça.
Se estou com um trabalho difícil, penso comigo “Calma garoto, não tente tirar a lua do fundo do mar”. Se alguém que não me simpatizo se dá mal, falo baixinho “Bem feito, quem mandou tentar tirar a lua do fundo do mar”.
E assim vou criando novos significados todos os dias.
Se você também tem algum, deixa um comentário dizendo.
Vai ajudar na minha coleção.
Mas por favor, lembre-se de nunca, jamais, em hipótese alguma,
tentar tirar a lua do fundo do mar.

vice-versa

Eu sou uma pessoa feliz.
Tão feliz que chego a ser irritante. Juro.
Daquelas pessoas que acordam cedo e dão bom dia para o sol, para os passarinhos e para os duendes de gesso que enfeitam o jardim.
O problema é que tão rápido quanto eu fico feliz, de repente estou triste.
E não precisa acontecer nada grave não. Basta uma besteirinha de nada.
Uma pipoca queimada no fundo do saco e pronto. Viro a pessoa mais triste do mundo. Mudo de humor como quem muda de lado na hora de dormir.
(Não sei vocês, mas eu mudo muito.).
Hoje à noite tenho uma festa pra ir. Não é uma festa qualquer.
É de uma amiga de infância. Ta bom, ta bom, de um amor de infância.
Acho que faz uns vinte anos que não vejo a Natália.
Mas tenho certeza que ela continua com aquela mania de deixar um olho mais fechado que o outro. Meu Deus, como isso me enlouquecia.
Enquanto as pessoas normais estão agora escolhendo a roupa para usar,
eu estou aqui escolhendo o humor para ir.
Sim, porque isso muda todo o curso da história. Como?
Vamos imaginar que eu resolva ir feliz para a festa.
Ótimo. Chego sozinho, porque todos os meus amigos saíram com as namoradas. Melhor assim, a Natália vai ver que eu não preciso de ninguém para ser feliz.
Vai me achar independente e resolvido, eu sou o epicentro do meu mundo.
Logo na entrada, dou de cara com a Ana Lúcia. Ela me amava na época do colégio e eu nunca dei muita bola. Puxo um pouco de conversa.
É, a Ana Lúcia mudou. Ficou mais simpática, mais inteligente e com os seios maiores. Ah, a maturidade. Ando um pouco entre os convidados e vejo a Natália. A Natália e um cara com quase dois metros de altura. Eles parecem felizes juntos, que bom. Acima de tudo, sou uma pessoa romântica. Não fico com um pingo de ciúmes. Eu estou feliz, lembra?
Vou até o bar e peço uma cerveja, que é a bebida mais indicada para quem está feliz. E eu estou. Excessivamente feliz. Fico uns 10 minutos observando a Ana Lúcia, com grande destaque para o decote. Ela percebe e vem falar comigo.
Bastam quinze minutos de conversa e já tenho certeza que ela é o amor da minha vida. Ah, como é bom estar feliz. Hora de cantar parabéns. Todo mundo feliz. Primeiro pedaço de bolo. Discurso emocionado. Mais desejos de felicidade. Mais cerveja. Mais de três horas da manhã. Melhor eu ir embora.
Quando vou chegando na porta, a Ana Lúcia me aborda de surpresa e pede uma carona. Não preciso dizer que a noite não termina nem na minha casa, nem na casa dela. Ai, que felicidade.
Agora vamos imaginar o contrário. E que eu resolva ir triste para festa.
Chego sozinho e morrendo de vergonha. A festa inteira vai pensar que eu continuo encalhado. Bom, e continuo mesmo. Entro me encostando pelos cantos da parede e quando menos espero dou de cara com a Ana Lúcia. Logo ela.
Esse assunto merece um parágrafo à parte. A Ana Lúcia é um dos maiores traumas de toda a minha vida. Quando a gente tinha dez anos, ela me puxou para uma sala vazia do colégio e pediu que eu mostrasse meu pintinho. Fiquei tão desesperado que sai correndo pelo colégio, gritando feito um louco. Aquela menina ia ser uma senhora sacana, sem sombra de dúvidas.
Resumindo, não tinha jeito pior de se começar uma noite. Vou andando por entre os convidados com a cabeça baixa para não encontrar mais ninguém. O tempo inteiro tenho a sensação de estar ouvindo aquelas risadinhas imbecis de seriado americano. Juro escutar elas toda vez que acontece algo ridículo comigo.
De longe, vejo a Natália com um homem. Um homem não, o Marcelo.
Logo ele, o cara mais nojento do colégio. Ele botava o chiclete embaixo da mesa para poder continuar mascando depois da aula.
O amor da minha vida, com o amor da vida dela, que por sinal, não sou eu.
Minha vontade é de abrir o bocão ali mesmo e não parar mais de chorar.
Em seguida começam a acontecer aquela sucessão de coisas deprimentes, que só poderiam acontecer numa festa de aniversário. Cachorro quente enrolado em papel alumínio. Copo descartável que se quebra na mão. E o pior de tudo: a empadinha. Sério, não existe coisa mais pra baixo nesse planeta do que empadinha de aniversário. Se a janela tivesse aberta, eu pulava. Resolvo ir até o bar e peço um café, que é a bebida mais indicada para quem está em depressão.
Fico olhando para o vazio até que percebo alguém se aproximando.
Meu Deus, é a Ana Lúcia. Tenho certeza que ela vai pedir para ver meu pintinho.
O desespero vai batendo. Forte. Ela vem com a cara mais pederasta do mundo.
Seus olhos estão fixo no meu colo. Boto a xícara em cima para criar uma barreira entre os olhos dela e meu pintinho. Não adianta. Ela está decidida. E ta bem perto.
Dou um pulo da cadeira e saio correndo feito louco pelo apartamento. Atropelo uns três no meio do caminho. Entro no elevador e vejo uma placa dizendo “Sorria, você está sendo filmado”. Começo a chorar desesperadamente.
Do outro lado da câmera, sei que estão ouvindo aquela risadinha imbecil.

passa por cima

Tem um barulho estranho no motor desse carro.
Preciso levar no mecânico. Urgente,
Aproveito e mando fazer uma revisão geral.
Alinhamento, balanceamento, troca de óleo, limpeza de filtro.
Hoje na hora do almoço eu faço isso. Sem falta.
Passo na casa da minha namorada, que agora é ex,
pego minhas roupas e minha escova de dente. Eu tinha uma gaveta só pra mim na casa dela. Mas enfim, faço isso e vou na oficina.
Se esse trânsito resolver andar, claro.
Mas espera, não anda agora não. Que menina mais linda nesse carro aqui do lado. Nossa Senhora. Mulherão viu? Pelo menos do pescoço pra cima que é a parte que eu consigo ver daqui. Espero ela colocar a mão na direção pra ver se tem aliança. Não tem. É solteira. Ótimo.
Meu Deus, a gasolina ta acabando. Preciso chegar logo num posto.
Andem carrinhos, andem. Ah não minha senhora!
Você não vai atravessar a rua logo agora que o trânsito começou a andar?
Não, não, por favor, não. Espera mais um pouquinho.
A senhora já viveu tantos anos, o que custa passar uns minutinhos aí na calçada?
Ai que saco, pode atravessar. Eu tenho todo o tempo do mundo mesmo.
Como é que está a família? E os netinhos vão bem? Já saiu o dinheiro do INSS?
Olha tem coisas no trânsito que me tiram do sério. De verdade.
Semáforo de três tempos. Campanha de doação do quilo. Gente dizendo que é surdo e mudo. Dizendo não, escrevendo. Claro.
Êpa, êpa, êpa. Pára tudo.
O que é isso ali que eu estou vendo?
Aquele braço pra fora no banco de passageiro. Eu conheço aquele relógio.
É a Denise. Minha namo...ex-namorada.
Mas quem é esse cara no banco de motorista?
Não faço a menor idéia.
Como eu pude ser trocado assim tão rápido?
Ela jurou de pé junto que não me esqueceria nunca.
E pela cara, ela não parece estar sofrendo nem um pouco.
Chega. Preciso me libertar de tudo isso.
Tá decidido então.
Vou pensar mais em mim a partir de agora.
Esse é o quilômetro zero de uma nova vida que vai nascer.
Pra começar, to precisando de uma revisão geral.
Vou me matricular numa academia de ginástica.
Tirar uns pneuzinhos.
Turbinar o motor.
Dar um trato na lataria.
Hoje na hora do almoço eu faço isso.
Sem falta.

que

Que descubram uma nova música dos Beatles
Que o Brasil ganhe de 5 a 0 da Argentina
Que o trovão não assuste os cachorros
Que todos os assentos sejam na janela
Que a saudade não diminua tanto o coração

Que ninguém assoe o nariz no meio da rua
Que os esmaltes ganhem nomes mais simples
Que finalmente encontrem Elvis
Que a reunião de condomínio resolva alguma coisa
Que o quiabo não tenha gosto de quiabo

Que Joãozinho plante novamente seu pé de feijão
Que a empadinha não se quebre na primeira mordida
Que surjam mais palavras bonitas como “via-láctea”
Que você não saia com o olho vermelho na foto
Que os livros de auto-ajuda não ajudem só o autor

Que todo lago tenha um cisne
Que a surpresa de uva não venha sempre com uva
(Senão não é uma surpresa)
Que domingo a noite seja menos triste
Que mais feriados caiam na sexta-feira
Que o nariz da Nicole Kidman vire patrimônio da humanidade

Que Alice leve o patinho feio para o País das Maravilhas
Que ninguém esqueça de mandar o anexo do e-mail
Que Chico Buarque viva para sempre
Que Plutão volte a ser um planeta
Que o band aid doa menos na hora de sair

Que ninguém tenha que sorrir porque está sendo filmado
Que sua fila ande mais rápido que a do lado
Que o tempo seja mesmo relativo
E que alguns minutos importantes se transformem em horas
Que Tom e Vinícius ainda escrevam músicas juntos

Que salvem mais quinhentas baleias
Que o cara da cerveja faça duas por três reais
Que você vire tema de escola de samba
Que ninguém seja obrigado a tirar foto 3x4
Que você ainda sonhe em ser astronauta

homem na cozinha

O que tem de errado nesse título?
Acertou quem disse “tudo”.
Tem coisas que simplesmente não combinam.
Homem e cozinha são uma delas.
Homem só devia entrar na cozinha para pegar cerveja na geladeira.
Ou transar em cima da pia.
Desde os tempos pré-históricos, o homem das cavernas acordava de manhã cedo, pegava seu tacape e saía para caçar. Mas quando voltava no final do dia, era a mulher das cavernas quem ia cozinhar. Não sei porque estão querendo mudar a própria história da humanidade.
Acontece que logo hoje.
Logo hoje que eu chamei meu chefe e a esposa aqui para casa.
Logo hoje que eu prometi um jantar daqueles.
Logo hoje que eu ia pedir uma promoção na minha carreira.
Logo hoje, a cozinheira faltou.
Que tragédia. Preciso pensar. Por que eu mesmo não faço o jantar?
Porque não, é óbvio.
Eu ia acabar errando tudo. Ou até causando um incêndio no prédio inteiro.
Se bem que se eu não tiver um jantar pronto daqui pras oito da noite, vou estar queimado do mesmo jeito.
Avaliando melhor a situação:
Já que eu consegui montar aquela esteira elétrica só lendo o manual,
também posso fazer um prato só vendo a receita. Não é mesmo?
Procuro nos cadernos de receita que minha mãe deixou de herança para mim.
“Pato ao Molho de Gengibre e Pimenta Verde”. Hum, parece bom.
Diz aqui que era a refeição mais servida nos banquetes do Palácio de Versalhes.
Minha mãe realmente se importava com isso.
Pois bem, um jantar digno da alta corte francesa.
Vamos a receita: 1 pato. 3 colheres de pimenta verde. 2 cálices de vinagre balsâmico. 2 colheres de gengibre ralado. 4 pitadas de açafrão.
Meu Deus, isso está mais pra alquimia do que pra culinária.
O pato ta aqui, mas o que eu faço agora?
“Colocar o pato numa assadeira com as patas amarradas para cima.”
Ah não! É covardia.Onde já se viu. Fazer uma coisa dessas com o pato?
Ter que ir pro forno com as patas pra cima. Eu não posso fazer isso com o pobrezinho. Justo eu que sou tão fã do Donald.
Nada disso. Vai ser assado de pé. Com a cabeça erguida e o peito estufado.
Se duvidar, vou providenciar até uma salva de tiros.
Mas se meu chefe não gostar de pato? Não é todo mundo que gosta.
Ou pior, se a mulher dele pertencer a alguma instituição protetora dos animais?
Aí minha promoção já era.
Tenho que parar de pensar nessas coisas e me concentrar na receita.
“Colocar sal a gosto”.
Mas a gosto de quem? Meu? Dos convidados? Ou do pato?
Será que vou ser demitido se a comida não ficar boa?
É melhor acabar com essa frescura e fazer logo esse pato.
É que eu preciso ser sincero.
Tem uma coisa que eu to sentindo desde que comecei a ler a receita.
E não posso mais guardar só pra mim.
Eu to com pena do pato. Pena mesmo.
Se ele tivesse fatiado ou cortado em quadradinhos até ia.
Mas assim inteirinho, não dá.
Começo a visualizar o pobre coitado e a pensar na vida que ele levava.
Vai ver que era um infeliz, o próprio patinho feio.
Não era chamado pras festas do colégio.
Estava sempre chorando pelos cantos.
Era depressivo e gostava de ouvir Radiohead.
Todos os seus relacionamentos amorosos davam errado.
Pobre pato. Eu sei bem o que você está sentindo.
Sozinho, jogado ao mundo.
Uma existência quase insignificante.
Agora, pela primeira vez eu sinto que não estou só.
Eu tenho você e você me tem.
Din-Don. Din-Don. A campainha toca.
Aos prantos eu vou abrir a porta.
É meu chefe e a esposa.
Segurando o pato nos braços, eu peço minha demissão.

Eu. Primeira pessoa do singular. E por mim, devia ser a única também.
Desde pequeno aprendi a gostar de ser só.
Lembro da minha mãe falando pras amigas “Olha que lindo o hipopótamo que ele fez com garrafas de refrigerante”. “E fez sozinho, viu?!”.
Daí pra frente, tive a impressão de que tudo que eu fizesse só, seria motivo de orgulho. Coloquei na minha cabeça que um coro de tenores jamais faria tanto sucesso quanto o Pavarotti.
No colégio quando a professora perguntava “O que você quer ser quando crescer?” Eu respondia “quero ser só”.
“Só o que?”, ela insistia. Viu, ninguém aceita o que é só.
Só é só e pronto. Não tem complemento.
Já reparou em comercial de whiskey?
Tem sempre um cara só, por volta dos cinqüenta anos, típico executivo de Wall Street, lendo um livro na varanda de sua casa no alto da colina.
Por que isso?
Porque é chique ser só.
Não dá pra imaginar um comercial de whiskey com um cara de 40 anos que chega em casa de ônibus e encontra toda sua família esperando na sala de jantar para comer o suflê de frango que sua mulher aprendeu a fazer na televisão.
Simplesmente não combina.
Nunca vou cometer nenhum crime.
Tenho medo de dividir uma cela com 50 pessoas.
Se eu fosse preso, pediria para cumprir a pena todinha na solitária.
Finalmente, realizei o grande sonho da minha vida.
Agora moro só.
Entro em casa e penso “esqueceram a luz acesa”, “tomaram meu iogurte”, “deixaram o chinelo de cabeça para baixo”. E só então me dou conta.
A única pessoa que pode ter feito tudo isso sou eu mesmo.
Menos mal, não vou me irritar comigo mesmo né?
É como disse o Erasmo. Não o da jovem guarda. O de Rotterdam. “Aquele que conhece a arte de viver consigo próprio, ignora o aborrecimento”. Esse cara sabia das coisas.
O telefone toca. Pra quem será?
Pra mim, é claro.
Não é muito melhor do que ficar dizendo “Pera que eu vou chamar ela” ou “Ainda não chegou do trabalho não”?
Morar só é descobrir o prazer das pequenas coisas.
O gás da cozinha leva uns cinco anos para acabar.
Você pode cortar as unhas sem se preocupar pra onde elas vão.
Você descobre que as porções que servem para duas pessoas, na realidade só servem para uma.
A única coisa que sinto falta é não ter uma panela de pressão.
Isso é o tipo de coisa que você só tem se morar com sua mãe ou com sua mulher.
Não adianta. Mas o resto eu tenho tudo.
Se preciso ouvir a voz de alguém, ligo a televisão. Aumento o som. Ou me encosto na parede para ouvir a conversa do vizinho.
Aposto que a branca de neve vivia bem melhor antes de chegar os sete anões.
O dia inteiro catando maçãs no sítio e falando sozinha no meio das árvores.
Tem coisa melhor que falar sozinho?
Posso falar a besteira que quiser e ninguém nunca vai me repreender.
Não sei porque essa mania de procurar ainda mais vidas em outros planetas.
Já não basta as que a gente tem aqui?
Sinceramente.
E se por um acaso você se sentir triste por estar só?
Simples, compra um peixe.
Agora só um.
Senão já vira multidão.