25 de set. de 2007

A insônia

Digamos que minha casa estivesse em chamas.
E antes de correr feito um louco ensandecido,
eu tivesse tempo de salvar uma única coisa.
Não tenho a menor dúvida.
Eu salvaria o meu edredon preto.
Não é que eu seja a pessoa mais materialista do mundo.
É só uma supertição boba.
Coloquei na cabeça que nunca vou conseguir dormir,
se não estiver com o meu edredon preto.
Acontece que essa teoria acaba de ir pro espaço.
São 2 horas da manhã e ainda não peguei no sono.
Logo na véspera do Casamento do Enrico.
Logo eu sendo o padrinho do noivo.
Essa ansiedade ta tirando o meu sono.
Talvez se eu não ficar tão ansioso, eu consiga.
Mas só a idéia de não ficar ansioso, me deixa ainda mais ansioso.
Melhor ligar o rádio e ouvir uma música lenta pra acalmar.
“Bom dia, queridos ouvintes”, berra o locutor.
Quer ver uma coisa que me tira do sério? É isso.
O cara dar bom dia só porque passou da meia noite.
Porra, bom dia é depois que a pessoa acorda e pronto.
Meu Deus, já ta clareando. Deve ser quase de manhã.
Não olhe pro relógio, não olhe pro relógio, não olhe.
Merda 5 horas da manhã.
Eu sabia que não devia ter olhado pro relógio.
Agora é que a minha ansiedade vai aumentar mesmo.
E eu ainda tava querendo acordar uma hora mais cedo
pra correr na praça. Já vi que vai ser impossível.
Pior, ainda vou pro casamento com olheiras. Eu mereço.
Tudo bem, não corro e durmo uma hora a mais.
Melhor: não corro, não tomo café e chego atrasado no trabalho.
Assim posso acordar duas horas mais tarde.
Mas é pouco, considerando que eu devia estar dormindo há 4 horas.
Já sei. Não corro, não tomo café e não vou pro trabalho.
Pronto. A ansiedade passou.

4 de set. de 2007

A estória que eu sempre quis contar

Um deles tinha o nariz redondo e cheio de espinhas, a testa enrugada e uma barba grisalha que ia até quase a altura do peito. O outro era idêntico. À exceção da barba, onde ao contrário do seu irmão, o preto predominava sobre o branco. Era impossível estar num mesmo ambiente e não notar a presença daqueles dois gêmeos que há muito passaram dos setenta anos. A cidade inteira os conhecia pelo curioso apelido de Irmãos Evento. Não havia um único acontecimento em que eles não estivessem presentes. Festa de casamento, exposição fotográfica, vernissage, posse do novo governador. Se era um evento, lá estava a dupla. Eram pobres e nunca receberam um único convite, mas a seu favor, contavam com uma cara de pau inigualável e o mesmo terno azul surrado de sempre. Não tinha segurança ou guarda-costas com coragem suficiente para impedir a entrada dos irmãos. Muitas vezes a agenda de eventos ocupava o dia inteiro. Café da manhã para nomeação do novo presidente da Federação das Indústrias, almoço com os médicos participantes do Congresso Internacional de Otorrinolaringologia e de noite uma coisa mais leve, que tanto podia ser um baile de debutante, quanto a confraternização de uma empresa qualquer. Aos setenta e tantos anos, um dos irmãos acabou morrendo de tuberculose. Como tinham virado personagens quase folclóricos, a prefeitura organizou um grande funeral. Toda a cidade compareceu. Entre políticos, artistas, doutores e personalidades, uma ausência foi marcante: a do irmão do falecido. Justo o de barba mais preta.